terça-feira, 31 de agosto de 2010

As despedidas finais do velho Rumpelstiltskin e seu pomposo caderno.

Chuva, quem diria! Me admira. Me deixa a delirar. Pois na lucidez dos velhos dias dos velhos anos de minha velha vida, nos breves momentos em que tu desembarcaste do teu navio e se fez por me amar mais uma vez, nos míseros instantes em que teus pés tocaram ao cais e me fizeram vez que você estava de volta, mais uma vez, um banho de chuva nunca fez tão bem a ninguém.
E é por essa chuva, querida, que aqui, dentro da cabine do meu trem, eu paro de escutar a minha bossa nova e o meu rock 'n roll, e escuto a música que, para nós dois, eu tenho certeza, começou com isso tudo. E é por escutar principalmente essa música do que qualquer outra, do que qualquer garotos d'água e do que qualquer outra cura também, é que eu me dou conta do quanto eu te devo muito mais.
Te devo todo o peso que te fiz carregar tão injustamente, te devo todas as angústias que tivemos. Te devo todos os textos que você me fez escrever, todos os desenhos que eu sei, você sempre soube que eram você que me fazia desenhar também. Te devo músicas. Todas as instrumentais que compus pra você. Te devo um caderno. Te devo os videos que ainda guardo naquele aparelhinho que você conhece tão bem. Te devo o meu casaco. Te devo o mundo que eu criei detalhe por detalhe pra que pudéssemos viver nele. Te devo todo o amor que se acumulou dentro de mim esse tempo todo, e que fui lerdo demais pra colocar pra fora nas horas certas. Te devo a história de uma vida inteira. Te devo uma vida inteira. Te devo um presente de aniversário e milhares de desaniversários. Te devo todas as metáforas que te escrevi, te devo mares. Te devo noites sem dormir, rindo comigo mesmo e me lembrando do seu sorriso. Te devo lágrimas.Milhares delas. Todas as suas que eu, em vida não fui capaz de suprir como eu prometi pra mim e deus desde sempre. Mas mais do que isso tudo, eu te devo um dvd pra colocar no lugar do que peguei de volta, né não?
Mas acontece que não dá mais. Não dá, e você bem sabe o quanto não dá. Não dá e hoje, pela última vez, eu me despeço de cada árvore do mundo que criei pra nós dois. Me despeço de cada castelo, de cada barco, de cada texto e de cada pedra de um riacho qualquer. É que acontece que aquilo tudo não tem a menor graça sem você lá, entende? É só que a verdade é que não existe rei sem rainha, e nem reino sem rei, e nem nada.
O maquinista disse que sem falta amanhã estamos de partida. Amanhã mesmo. Sem falta. Então olhe nos meus olhos uma última vez. Olhe nos meus olhos e por através das lágrimas que agora escorrem por onde deveriam estar as minhas lentes, olhe nos meus olhos e veja o quanto eu te amo, e dê uma olhada naquele mundo que agora deixo pra trás. Veja todos os rios, e todos os barcos, e todos os mares, florestas, castelos e o que mais conseguir encontrar. Ouça os pássaros cantando, e a música que eu deixei tocando no rádio. Sinta o cheiro. Veja o azul, o verde, e principalmente, o marrom. Dê uma olhada e tire a cabeça rápido. Tire a cabeça rápido, pois é hora de dizer adeus. Tire a cabeça rápido que é pra não deixar saudade. Tire a cabeça rápido que é pra dar tempo de eu te dizer pela última vez o quanto eu te amo, o quanto sentirei a sua falta e de tudo o mais. Tire a cabeça rápido que é pra eu te dar um último beijo de despedida, como sempre sonhei em te dar.
E agora eu deixo o rio correr. Deixo todas, as mágoas, nostálgias, músicas e belezas fluírem rio abaixo, junto com essas últimas lágrimas que me descem abaixo a face. Deixo tudo de velho, inclusive eu, e deixo o que vem de novo pro novo que almeja por nascer aqui dentro. E minhas últimas palavras são apenas o seu nome. Sem Elise, sem Alice. Sem nenhuma outra cor que não o loiro dos seus cabelos bonitos. Minhas últimas palavras são apenas você: Sophia.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

*Caixa postal, após o sinal, diga o seu nome e de onde está falando -


"Oi amor, sou eu. Estou ligando só pra dizer que já vou indo pra estação, e só pra dar um tchau mais uma vez também"
"Eu queria muito passar aí pra te dar um abraço, mas sabe como é, ir pra Finlândia hoje em dia tá cada vez mais difícil, né não?"

"Ah! Eu lembrei que hoje é o nosso aniversário, não é mesmo? Parabéns! Eu fiz uma besteirinha pra dar de presente, coloquei no correio, não sei quanto tempo vai levar pra entregarem, as coisas andam maio loucas hoje em dia...?"
"..."
"Ah! Mande um beijo pras crianças por mim também, eu vou sentir falta deles por lá..."
"..."
"Olha querida, eu só liguei mesmo pra te dizer mais uma vez que eu te amo, ok? Eu te amo, e não tem distancia que vá mudar isso pra mim. Nem distancia e nem saudade. E... eu lhe devo um pedido de desculpas também. Desculpa por ter ficado velho, e ranzinza assim. Eu nunca quis isso, você sabe. Você não faz idéia do quanto eu queria continuar aqui quando você pensasse aquilo que cê disse naquela tua última carta, mas é só que não dá. Não se adia essas coisas..."
"..."
"Bom, é melhor eu ir que eu já estou atrasado, aposto que vou levar uma bronca quando chegar lá então... até mais querida, eu vou sentir saudades, adeus."

terça-feira, 10 de agosto de 2010

De roupa floral.

Fiz bem em ter arrumado as malas hoje cedo. Me poupei da agonia e do estresse que sempre foi pra mim fazer as malas na última hora antes da viagem e das broncas de todo mundo, me agoniando pra eu não perder o trem. Joguei na mala tudo quanto era roupa que eu tinha, afinal, nunca se sabe como é o tempo nesses lugares malucos de outro mundo. Coloquei na mala bastante agasalho. Peguei os meus melhores cachecóis, e os casacos mais bonitos que eu tinha no guarda-roupa. Coloquei roupa de banho também, até sunga dessa vez! Coloquei um punhado de calças jeans e um bocado de camisas básicas, e também aquela minha velha flanela que você conhece melhor do que ninguém. Mas não se preocupe! Dessa vez eu fiz questão de, não só deixar o terno e a gravata de lado, como também de descê-los descarga abaixo, pra que não aconteça que nem da última vez, e eu acabe engolido pela aquela velha casca tosca.
Escolhi a roupa pra ir também, sabia? E antes era você costumava escolher as minhas roupas quando costumávamos viajar juntos! Parece que eu cresci um tantinho em todos esses anos, não foi não? haha. Mas escolhia muito bem, e eu tenho que admitir: Marrom ainda é a minha cor favorita, desde a nossa viagem com aquele seu casaco velho pra frança. Mas bem, eu acho que você não vai gostar do que eu escolhi pra mim dessa vez, é meio estilo floral, sabe? Uma coisa meio Califórnia de uns anos atrás, enfim: Um short branco, com flores tipo aquelas do céu do Bob Esponja, sabe? E tem também uma camisa, bom, na verdade 2 camisas: Uma de botão, azul escuro e com coqueiros, e por baixo vem uma camisa laranja que eu comprei nem sei pra que, mas pelo menos foi útil, haha. Estou indo de óculos escuros e de havaianas também. Confesso, estou esperando que por lá seja um barato só.
De bagagem de mão eu não levo nada. O velhaco lá falou que agente tem que se desprender de bens pessoais e um monte de outros blá blá blás lá que ele falou. Enfim, já que eu não posso levar nada, decidi que tudo fica pra você. Sim, tudinho. Quero dizer, algumas coisas eu perdi no meio dessa bagunça toda que o meu quarto virou quando aquela gaveta maluca decidiu se rebelar e jogar toda a papelada que ela guardava pra fora, me desculpe por isso, mas eu dou um jeito do que sobrou ficar com você, pode deixar.
Dei um jeito de colocar o meu violão também pra dentro do bagageiro. Coloquei escondido. Disseram que não podia, porque tecnicamente era bem-pessoal e blá blá blá, mas eu dei o meu jeitinho, um agrado ao maquinista resolve muita coisa. Eu dei um jeito também de esconder um piano e uma guitarra dentro do violão, afinal, física é uma merda mesmo, pra que obedecê-la? Que se explodam todos os niltons, e os Milton's também, oras!
Mas na minha cabine quero tocar só violão. Tocar um pouco de bossa-nova, um muito de rock'n roll, e compor. Compor de montão. Compor sobre sábados e feriados, sobre domingos de ressacas e sobre festas caprichosas. Compor sobre tardes em praias, sobre choros em baladas, sobre o mundo novo e louco que me espera do outro lado, e que me faz sorrir, e me deixa ansioso, só pra ir.
E a verdade é que eu vou amanhã mesmo, docinho. Vou com toda a bagagem debaixo do braço, e com todo o entusiasmo entre as pernas. E vou, mas chego mais cedo na estação e te dou um telefonema, tudo bem assim? Não falo assim por agora, porque eu prometi que ia deixar a tristeza só pra a despedida, lembra? Sem choradeira antes, e nem depois também, olhe lá! Te ligo amanhã, amoreco. Beijos do teu velho.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

domingo, 1 de agosto de 2010

Amor, isso sim.

Pássaro. Pássaro, pássaro, pássaro!
Quando eu era pequeno eu bem que queria ser um. Imaginava como seria divertido planar por entre árvores, ou pela superfície do mar, ver tudo bem do alto, pra todo mundo parecer formiguinha pra mim.
Pensava que se não pudesse ser pássaro, ia querer ser avião. Afinal, é quase a mesma coisa, só ia sentir um pouco de falta do bater de asas que adorava dentro da cachola, mas com essas coisas agente se acostuma, então nem tanta diferença fazia.
Depois quis ser tubarão. Nadar pelas mais profundas entranhas do oceano, avistar uma presa, ir de mansinho, e então BAM! Abocanhá-la de uma só vez, e engolir sem nem mastigar.
Dizia que se não pudesse ser tubarão, ia querer ser marinheiro. Tá certo que esse aí já não tem tanto a ver, mais mesmo assim, queria. Dizia que ia comprar um barco só pra mim e pra a titia, e minha irmãzinha também, se ela parasse de me abusar.
Depois eu quis ser bactéria. Pensava que devia ser um máximo poder se dividir em quinzenas de gazilhares por aí. Achava que podia fazer um monte de amigo assim, e quem sabe ter esposa e filhos desse jeito? Que nem no livro da Familia Bactéria que a mamãe lia pra mim, era uma das minhas histórias preferidas.
Dizia que se não pudesse ser bactéria, ia querer ser cientista. Mexer com aqueles tubinhos, botar melecas verdes umas dentro das outras, ou até mesmo explodir tudo! Aposto que conseguiria criar um montão de bactérias legais desse jeito. Quase ganhei um concurso da feira de ciências do melhor desenho. Fiquei em segundo lugar, mas todo mundo dizia que eu merecia o primeiro. Tinha desenhado eu quando fosse adulto, tinha ficado realmente muito legal, e mesmo com o segundo lugar, todo mundo ficou super orgulhoso de mim.
Mas daí eu cresci. Cresci, e quis ser amor. Imagine só, poder fazer as pessoas voarem de paixão pelo mundo afora, nadarem por um mar feito de litros de porções de poções do amor. Ser cura e ser doença ao mesmo tempo, e multiplicar-me aos montes para dar todo o amor que o mundo inteiro precisasse.
E disse que se não pudesse ser amor, iria querer ser apaixonado. Ia querer ser uma parte do inteiro que é a beleza disso tudo. Dizia que não queria mais nada, apenas ser o que dizia, e pela primeira vez, fui. Pela primeira vez, eu fui de fato tudo o que quis ser! Pela primeira vez, vi os coturnos esbeltos, os perfumes diversos, e tão cheirosos, ví infusões de cores e flores! Vi você!
Pela primeira vez na vida, fui eu mesmo de verdade, e agora você me diz que eu sou um pássaro? Pense bem, não acha que eu sou o que lhe digo ser não? E mais do que isso, não acha que você também não é, o que eu lhe digo ser não? E mais ainda, não acha que somos o que lhe digo sermos não?Pense bem, querida, e me diga, não acha que somos amor?

A casca: Fim.

Não.
Não Elise, não Alice, nem azul, nem verde ou até marrom.

Pelo menos no fim, crosta nenhuma abrigará o meu ego nú, que tanto sente a carência de ver o teu próprio também nú. Me recuso a deixar cascas na nossa história, mesmo que o fim do mundo que conhecemos esteja próximo, como parece.

Perde a compostura - Tira a beleza do ser e do estar ,que nunca, em tempo nenhum, foram tão belos, nem nesse mundo nem em nenhum outro. Desprove o orgulho de uma narração inteira, que virá no futuro, certamente, para qualquer um que queira escutar, e chorar.

Dessa vez não darei brecha. Afinal, que conseqüências um cadáver poderia vir a sofrer por atos nobres? Esse tipo de coisa só acontece quando se está vivo.

Por esses e por tantos outros, me despido aqui de uma vez por todas da velha casca que há tanto me atormenta. Me despido e logo digo: Despida-se também. Quebra tua casca assim como estou por quebrar a minha, e que nasça de dentro, mais uma vez, uma última vez, a mulher que amo.

Sem pressufixos, sem pseudônimos, sem um pingo de casca. Pelo menos os últimos momentos, quero estar a admirar os coturnos do seu corpo, que há tanto não tenho a circunspectância de apreciar.

Pelo menos nos últimos momentos, deixemos para trás as velharias, e nos olhemos por nós sós. Pelo menos nos últimos momentos, esqueça aquela mochila sem graça, ou aqueles tênis maltrapalhos, e nos deixe ser o "nós" da história mais uma vez, pela última vez.

Porque a verdade é que não é mesmo, nem Alice, nem Elise, nem outros tantos nomes que te dei em segredo. Nem é marrom, nem azul e nem verde. A verdade é que nem o teu nome na verdade é. Porque nesse universo de alucinógenos, quem liga pra estereótipos? A verdade é que não é fim, é amor. A verdade é que é muito mais do que a casca que você absurdamente se julga ser. A verdade é que é tudo, porque meu peito jamais seria capaz de bater forte o coração por menos, porque o meu tudo é você, porque você é linda. E se existe uma tal verdade absoluta no mundo é essa, e nada menos.

E eu sei, meu anjo, é pedir demais, pedir demais por demais, mas lhe peço com por favores, o último pedido de um velho amores. Amores que se confundem com dores, e que se fazem na perversão. Mas perversão como essa tem perdão, e no final das contas, e que se faça do meu perdão, também o pedido do menino pidão, pode? Diga-me, por favor. E rezo em silencio para que a resposta seja um sim, por todos os agnósticos que sempre me disse ser.

Mas quer você se decida por despida ou vestida, será assim. Passarei esses últimos dias nú, como sempre tive medo de estar. E escreverei do meu jeito no meu recanto, os próximos últimos textos do nosso romance furado e amado. Com amor e nem um pingo de dor.

De um jeito ou de outro, no fim, tudo é.







Ah, sim! Quase me esqueço! Uma curiosidade, quem um dia falou em voar?




quinta-feira, 29 de julho de 2010

A Sentença final do pomposo Caderno da B&W

Querida,
Eu sei que há tempos que não lhe escrevo, e sinto muito por isso, mas sinto ainda por lhe dizer que dessa vez, eu não lhe escrevo para lhe dar as declarações de amor costumeiras de sempre, escrevo-lhe apenas para lhe explicar, pois sei que está confusa, e lhe dizer o que virá a seguir, antes que as bombas te atinjam.
Sem graça, eu sei. Há tanto tempo, querida, que não troco uma palavra contigo, e justo quando me sinto capacitado de fazê-lo, é para algo tão sem graça e sem sal. É de tirar o ânimo.
Mas existe uma explicação para tudo, querida. Esses dias que eu passei longe, foram a vagar em busca de um quê, e de um quermesse qualquer que almejasse substituir o que quer que fosse. E não sem rumo, desvairado, como costumei estar, antes do meu último grande plano.
E você bem sabe, melhor do que ninguém, que o meu último grande plano furou. Furou por um dia de atraso, por um outro perfume, um outro tênis, e uma outra mochila, que já nem deveriam mais ser capazes de mover um pontinho da estrada certa que é a incerteza do nosso amor.
E eu percebi logo de cara. Se quer mesmo saber, foi o seu sorriso que te entregou. Não era o sorriso da minha Elise, e nem ao menos o da Alice, era o sorriso da simples casca que encobrira a ti que, atrevo-me a dizer, eu não admiro.
E quando eu percebi, querida, só me desatou a chorar. Uma noite inteira. Ressaca dos litros de loucuras que ingeri, da quantidade de alucinógenos de ilusões que tomei, e principalmente, das criações fantasiosas, porém reais, que tinha preparado para nós dois enquanto estávamos a crer naquele nosso grande plano. Afinal, era impossível de falhar, não era? Foi feito para ser!
Mas depois da desagua, só me restou pensar. Pensar em tudo e em nós, porque desde que nos tornamos o que fomos, tudo e nós deixaram de ser coisas distintas, e se formaram no todo mais magnífico que poderia existir, no amor.
E foi isso o que eu fiz. Eu pensei. Eu passei esses últimos anos inteiros que estive longe de ti a pensar, quebrei a cabeça, rachei a cuca, e pensei. E por fim, entendi.
É que acontece que eu estou velho demais, querida. Acontece que o coração deste pobre velho, já não consegue mais dar todo o amor que você precisa, e nem ao menos o que eu preciso também. Eu entendi que a minha hora está chegando. Eu entendi que prolonguei e enganei a morte vezes demais, e que já não tenho mais como fugir, e não tem plano brilhante nenhum que me salve desta vez.
E é uma morte diferente das minhas outras, querida. Essa não é de amor, como a do naufrágio, é por pura velhice, e um pouco de caduquice também, se me permite brincar no meu próprio leito. Olhando pra trás, acho que eu me recordo, quando o meu grande plano começou, de ter previsto algo assim, caso tudo desse errado. A memória me falha, mas creio eu que na primeira carta, eu mencionei que algo assim viria a acontecer, se o infalível viesse a falir. Mas não importa mais, afinal, quem liga para estereótipos hoje em dia?
Querida, não fique triste com a minha ida. Não desta vez. Afinal, eu ainda não fui, e demorarei um pouco de ir ainda. Acontece que, mesmo o meu grande plano tendo falhado, eu deixei muito a fazer ainda. Ainda tenho uma punhalada de textos para lhe escrever até que o meu momento chegue. E quando chegar, eu prometo, deixarei o meu melhor texto para ti.
Aproveite as próximas cartas, meu anjo, não brinco quando digo que serão as últimas. E esse é o maior propósito delas, afinal. Despedir-se pouco a pouco. Tem gente que diz que é mais doloroso, eu acho necessário. Mas deixarei para falar da partida quando a ela estiver a deriva, até lá deixo-lhe então, a mercê de mim mesmo, com um pouco mais de paixão, pois deixarei a tristeza para a partida.
Com todo o amor que houver nessa vida pra você,
O teu amado.

terça-feira, 20 de julho de 2010

O memorável suicídio do Sr. Saunsmeuch.

O Sr. Saunsmeunch estava excepcionalmente descontente naquele dia. As coisas não corriam muito bem no seu próprio mundo. Não me pergunte o que, eu não sei, talvez nem mesmo o Sr. Saunsmeunch soubesse, mas a questão é que, fosse o que fosse, não ia nada bem.
Tal era seu descontentamento naquela manhã que, durante a costumeira visita ao bom médico-biruta, ele nem ao menos fingiu fazer nenhum exame louco qualquer, nem ao menos fingiu ter entendido alguma das baboseiras que àquele médico fanfarrão almejou dizer, e mais do que isso, nem ao menos fingiu pegar a receita que normalmente fingia jogar fora na saída da clínica.
Tal era seu descontentamento naquela tarde que, quando a esposa o cumprimentou ao chegar em casa, ele nem ao menos fingiu dar um beijo nela, nem ao menos fingiu o diálogo costumeiro e sem-tempero de sempre, e mais do que isso, nem ao menos fingiu que a estava vendo, porque há muito tempo que tudo o que via era apenas o seu próprio mundo.
Tal era o seu descontentamento naquela noite que, ao fingir colocar Samantha para dormir, nem ao menos fingiu que inventava uma história qualquer da sua velha cachola, nem ao menos fingiu dar um beijo em sua testa, e mais do que isso, nem ao menos fingiu desejar boa-noite para Samantha, e nem dizer que o bicho papão apareceria para ajudar ela a dormir.
Tal era o descontentamento do Sr. Saunsmeunch naquela manhã, tarde e noite que, ao olhar para o seu próprio mundo antes de fingir dormir, nem ao menos conseguiu vê-lo, pela primeira vez em tudo o que fingira ser vida.
E foi por perceber que não mais veria o seu próprio mundo enquanto àquele outro estivesse preso (pelo menos fisicamente), foi que ele bolou a sua grande e memorável fuga para o seu próprio mundo, feito sabe-se lá de que. Sim! Ele não se prenderia mais a fingimentos e a fragmentos, pois num mundo que é feito inteiramente de tais coisas, termina fazendo com que todas elas deixem de ser o que as pessoas supõem que sejam. Sim! O seu próprio mundo, finalmente veria o seu criador por sí só, sem fingimentos, sem esclarecimentos, apenas ele puro do seu ser e do seu estar, e nada mais do que a sua própria verdade absoluta!
É desonroso dizer que só o que contam por aí é que o louco da casa 16 simplesmente se matou, seja lá de que forma for que fosse. Se matar! Onde já se viu isso? Só um louco para fazê-lo, e um louco como o Sr. Saunsmeuch, em sua plena sanidade mental, jamais faria nada mais além de fingir se matar.
E por isso enquanto todos o enterram, e choram lírios pela sua réris casca desde sempre oca, o Sr. Saunsmench corre para um outro médico, uma outra esposa, e até mesmo uma outra filha, e ri-se do mundo que deixou, no seu próprio mundo, que enfim tiraria o seu descontentamento e por fim, o faria contente.
E foi assim, com o mais memorável suicídio de todos os tempos, que Samanha Saunsmeunch, uma criança feita de loucuras e gravuras, perdeu o pai, com a mesma idade que ele sempre fingiu para todos ter. Com nada mais, nada menos que 9 anos de idade (ou quase isso).

Ana Maria e as suas dores.


Ana Maria e as suas dores nas costas,
só dizia o que fazia
e o que fazia era reclamar,
Ana Maria e as suas dores nas costas,
só fazia o que queria
e o que queria era reclamar.

Dizia que a culpa era de Patrício,
que fazia um sacrificio
só pra ver televisão,
Dizia que a culpa era do Seu Pedro,
que não tinha mais dinheiro
nem pra pagar a pensão.

Dizia que a culpa era de João,
que não deu satisfação
e nunca mais apareceu,
Mas sabia que isso tudo era saudade
do seu velho cara-metade
que há muito faleceu.

Ana Maria e as suas dores nas costas,
só doía porque sofria
e sofria era de amor,
Ana Maria e as suas dores nas costas,
só sofria porque já não tinha
já não tinha o seu amor.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

A noite antes da viagem.

Como da última vez, o ar. Há tempos que não o respiro, e francamente, esperava continuar sem respirá-lo por um bom tempo ainda.
Estranho esse ar ter vindo justo essa noite, quando você vai, mais uma vez, para longe. Pra longe dessa cidade, pra longe daquele colégio, daquela sala de cinema, dessa casa, e principalmente, de mim.
É bem verdade que aconteceu quase a mesma coisa que da última vez. Planos mirabolantes, loucuras, estratagemas, vontades, amores, falhas. É bem verdade que eu, mais uma vez, só não pelei do trampolim por que não consegui. E lhe digo mais, é bem verdade que eu, ainda assim, não penso que não poderei um dia pular. Pular e assustar a todos. Fazer todos olharem pra baixo, ficarem preocupados, e depois de cinco segundos, aparecer. Aparecer rindo-me das minhas certezas. Aparecer mostrando os dentes à beira da lucidez. Aparecer fazendo inveja em todos os que, nem ao menos sabem o quanto aquilo tudo poderia ser incrível.
Mas eis que ainda estou aqui eu, fitando a mim mesmo, beirando o meu próprio ego, e causando nada mais que a indiferença de todos eles a quem quero provar.
Estou aqui eu, um dia antes da sua viagem, e ainda há vários tempos da minha, por mais que ela só esteja há 4 dias contando de hoje. Estou aqui, pensando o quanto faz falta, o quanto dá a pauta, e isso ainda enquanto há porta. Me perdendo nos seus cabelos, nos seus terços, nos seus meios. Me perdendo, aliás, em tudo que ainda resta para me perder, tudo. O que, de forma alguma é pouca coisa, ainda menos se tratando de você.
Me pergunto que cores que suas viagens tem. Será que tem marrom nelas? Eu espero que sim, marrom sempre faz bem pra essas coisas. Se não tiver, leve o meu casaco emprestado, por favor, mas não viaje sem nenhum marrom.
Aposto como deve ter azul. Você sempre gostou de azul, eu nunca soube muito bem qual, nem direito o porque, mas você sempre gostou, então, se não tiver, leve a minha guitarra, você sempre gostou do azul dela. Se tem uma coisa que eu aprendi nesses últimos tempos é a seguinte: nunca viaje sem a sua cor preferida. Então leve, de um jeito ou de outro.
Aposto como deve ter várias outras cores também. Se faltar alguma, pode roubar de mim. Eu não tenho um cofre no banco, nem nada, vai ser fácil, afinal, é só um caderno, impresso em preto e branco e com páginas de papel, não deve ser difícil.
"E a sua viagem, como fica?" É o que você me diria se já não tivesse ido, e levado isso tudo, mesmo sem perceber peso extra na bagagem. Mas bom, a minha viagem não importa. Eu posso passar a minha viagem no vermelho, ou mesmo no cinza, mais a minha verdadeira viagem vai ser quando eu ver nos seus olhos o brilho marrom que tem nos meus, e ver eles fundidos ao azul, no seu verde que a genética te deu. E, por deus, teria viagem mais linda que uma dessas? Eu e você, fundidos no seu olhar, nos beijando no bom verde, sem perder as nossas cores, é claro. Mas me explique, por deus, como uma viagem poderia ser mais perfeita que essa?
E afinal, como seria a noite antes dessa viagem? Como seria o ar? E alguém por favor me explique, como eu conseguiria respirá-lo, sabendo de tanto? Alguém por favor me diga, alguém faça o favor de me dizer. Me digam que você levou o meu marrom e o seu azul, e que eu nunca mais irei respirar nenhum ar que não seja esse, nenhum ar que não seja o da noite antes da nossa viagem, nos seus olhos.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

A Casca: Fim. [continuação por precipitação]

(...)
Eu sei, e todos nós sabemos, que antes aqui jaziam outras palavras. Eu sei, e você bem sabe, o quanto esperávamos estar agora a sós e completamentes nús, com os corpos em contrapartida, suados e amados, e lindos, por nós mesmos a classificar. Mas eu sei, e só eu sei, o quanto eu queria tudo isso, de verdade, mais do que tudo que a malícia almeja, e mais do que o furto que o país despeja, eu queria muito mais. Queria, mas eis que houveram complicações, e várias devido a precipitações, eu ouso dizer. Eis que me vejo aqui, sentado á sua fernte, ouvindo uma palestra com outro terno e outra gravata, estes cem vezes mais espessos e caros do que os que costumava usar antes, e você também. E eis que, na verdade, eu sabia muito bem que seria assim. Eis que eu sabia muito bem que o grande plano acabaria por dar errado assim. Eis que eu sabia que a cortina ia baixar, e que não haveriam aplausos da platéia diante do fim do espetáculo. Eis que eu sabia disso tudo, e talvez por isso mesmo tenha aproveitado tão bem os tempos do processo e nos amado, como se não houvesse o amanhã que prometíamos, e que acabou por não haver. Mas eu prometo, por tudo o que somos e o que fomos, que eu ainda me despidirei daquilo tudo, e despidirei por você também, porque eu sei que podemos, que queremos, e principalmente, que até lá, morremos.
E por tanto, por hora volto para a casca que há tão pouco jurei ter me ido para sempre e me visto, com o mais toscamente entalhado dos ternos que desprego, e deixo apenas a minha palavra, de que ainda volto para ti e para mim, e para a nudez que aspiro no meu figo, e para o mar.

terça-feira, 22 de junho de 2010

O Desaniversário.


(...)

Eu deveria estar fazendo aniversário hoje, mas acontece que não foi hoje que eu nasci. Não, não, você bem sabe, Alice, que foi naquele dia ensolarado que eu nasci. Aquele dia que hoje nos parece feito das nostálgias dos bons tempos, e de marrom. E você nem sabe, Alice, que naquele dia, eu nasci mesmo foi por acaso.
Sim, por acaso! Afinal, depois de uma manhã de sanidade e de abstinência do chá que ainda não conhecia, o que eu queria mesmo era achar uma árvore e uma sombra, e tirar um bom cochilo. Quem sabe acordar mais tarde e caminhar um pouco, olhar o céu, o chão, sei lá. Essas coisas que esse povo louco faz por ai, sabe? Mas bom, terminou não foi isso que aconteceu, não é?
Não, não. Você apareceu, vindo do seu próprio país e me levando para dentro dele. Bom, na verdade naquele país estava você e todos os outros, mas certamente estava mais você do que qualquer um. Mas bom, de um jeito ou de outro, estavam todos lá, e todos vieram de se unir contra mim, e unidos, conseguiram a proeza de derrubar o meu grande plano de mais uma tarde sem-graça da minha destopia de país pessoal.
Esse sim deveria ser comemorado o dia do meu aniversário. O dia em que eu saí do meu falho projeto de vida e fui, enfim viver. O dia em que eu deixei aquela terra de gente louca, e encontrei o meu lindo País das Maravilhas. E eu deveria estar comemorando o meu aniversário é lá! Rindo-me e bebendo do mais frabuloso chá, e não aqui, nessa velha terra que eu há tanto havia deixado. Não num dia perdido como hoje, não numa festa sem-graça, infestada de garças. Uma festa feita de hipocrisias, de gente fútil, feita de "felizes aniversários", sendo que nem aniversário meu é! Não num dia onde todos gritam comigo, brigam comigo, e nem ao menos me deixam fazer um maldito chapéu em paz! Um dia no qual tenho você e todos os outros em seus próprios países (das maravilhas ou não), nenhum dia ensolarado, e ninguém para impedir os meus cochilos, me oferecer chá, e nem destruir um outro plano bobo meu qualquer.
E é justamente por não haver ninguém aqui, Alice, que te fantasio nesse pedaço de papel. Fantasio uma outra carta, das milhões que nunca enviei, colando selos deus sabe pra que. É justamente por não haver ninguém aqui, Alice, que hoje nada mais passa que o mais sem graça dos desaniversários, que um louco como eu jamais teve a desonra de ter, porque louco nenhum que esteja em plena sanidade mental jamais, em hipótese alguma, se deixa ser arrastado, mesmo que à força, para fora do seu País das Maravilhas.
E é justamente por não haver ninguém aqui hoje, Alice, que só me resta cantar, comigo mesmo e com a cartola que levo na cabeça, fingindo a animação que me decidiu fugir:

 

"Um bom desaniversário pra mim"
"Pra quem?"
"Pra mim"
"Pra ti?"
"Um bom desaniversário pra ti"
"Pra mim?"
"Sim sim (É sim)"
"Vamos comprimentarmos com uma xícara de chá"
"Com um desaniversário pra mim"

Ah, Sim! Quase me esqueço, coloquei em anexo uma foto dos bons tempos, daquele dia ensolarado, sabe? Um presentinho de desaniversário, nada demais, espero que goste. Feliz desaniversário.


Com saudades,
O Louco da sua História.

domingo, 20 de junho de 2010

Anfitrião.

"Alice! Você aqui? Entre, entre, vamos. Como tem passado? Bom, eu tenho passado me lembrando, sabe? Eu tenho passado me lembrando de todos aqueles anos, me lembrando daquela noite clara, daquele texto, daquele marrom."
"Se eu ainda penso naquilo? Bom, eu não vou mentir pra você, Alice. Confesso-lhe, penso naqueles anos todos os dias desde que partiu. Penso e fantasio mil coisas com ele. Fantasio o sol, fantasio a madeira, e até me fantasio! Acredita? Fantasio, fantasio só porque o presente não me parece tão tentador quanto o passado já foi, e você bem sabe, Alice, não é."
"O presente? Ah, bom, os últimos dias tem feito - pelo menos em tese - o presente parecer um pouco mais agradável do que estava antes. Tanto que eu nem estava mais vivendo em todos aqueles passados já tão passados da hora. Mas agora eis que o passado, tão marrom, se juntou em complô com o verde, e deu que eles vieram aqui mesmo, só pra me derrubar, acredita nisso?"
"Sim, o verde. Quem diria, não é? Nunca havia dado muito valor a ele, talvez por isso que ele tenha vindo assim com tudo, ou não, quem sabe? Talvez tenha sido por causa daquelas músicas, daquele filme, ou talvez por causa das árvores, que por algum motivo não saem da minha cabeça. Sim, sim, árvores! Deixe que mais tarde eu lhe explico".
"Mas bom, é simplesmente impossível tentar entender as cores, não acha? Assim como é impossível tentar entender as flores, as dores, e tantas outras coisas fascinantes que se dispõem diante de nós. Ainda mais as cores! Ora, que tolice! Tentar entender as cores é quase a mesma coisa que tentar entender o que sinto, o que minto, o que finco. Quase a mesma coisa que tentar entender a nós mesmos e os nossos beijos, quase a mesma coisa que tentar entender os abraços, o barco e o naufrágio. Que tolice! Não acha?"
"Mas eu não sei bem. Marrom junto com verde é pra lá de estranho, né não? Talvez seja por isso que essas árvores não saiam da minha cabeça, afinal, aonde mais eu iria encontrar verde junto com marrom? Coisa de doido!E mais fácil ver, o verde no seu canto e o marrom no meu, acha não?"
"O marrom! Já tem alguns anos que, você bem sabe, aprendi a me deliciar com ele. Gostava dele puro. O seu casaco dissolvido no assoalho daquela história e bem fervido na madeira da sua casa. Mas com verde no meio está me parecendo com uma cara tão boa! Está tão parecido com aquele filme, com as músicas daquele filme, com aquela noite clara! Que mal faria um pouco de folhas de árvore no seu casaco? Quero dizer, eu acho muito bom, mas é você quem sabe, afinal, o casaco é seu mesmo..."
"Santo deus! Perdõe meus maus modos. Te enchi com tanto papo furado que até me esqueci de te oferecer um drinque! Me diga, Alice, vai querer folhas de árvore no seu casaco?"

sexta-feira, 18 de junho de 2010

As minhas retcencias.


"Tá certo que o nosso mal
Jeito foi vital
Pra dispensar o nosso tom;
O nosso som pausou.

E por tanta exposição
A disposição cansou.
Secou da fonte da paciência
E nossa excelência ficou lá fora.

Solução é a solidão de nós.
Deixe eu me livrar das minhas marcas;
Deixe eu me lembrar de criar asas.

Deixa que esse verão eu faço só.
Deixa que esse verão eu faço só.
Deixa que nesse verão eu faço sol.

Só me resta agora acreditar
Que esse encontro que se deu
Não nos traduziu melhor.

A conta da saudade
Quem é que paga?
Já que estamos brigados de nada;
Já que estamos fincados em dor.

Lembra o que valeu a pena
Foi nossa cena não ter pressa pra passar.

(...)"


quinta-feira, 17 de junho de 2010

Vou lhe dizer (um pouco).

(...)
Não. Suas palavras nunca perderam o contorno aconchegante de sempre. E nem sua melodia. Nem nada. É só.

terça-feira, 15 de junho de 2010

A sala.

(...)
"Velho! Velho! Eu preciso falar contigo! Está me parecendo que voltei no tempo!"
"No tempo, você disse?" disse o ancião, sentando-se novamente em sua velha poltrona, enquanto dobrava a barba por cima das pernas e acendia o cachimbo.
"É, aqueles anos que passei naquele patíbulo imundo, lembra? Os anos que eu tinha me acostumado e viver por viver, e sem nem ao menos sentir falta de algo mais, que eu nem sabia que tinha."
"Pois estás enganado. Ninguém jamais poderá voltar no tempo, nem que seja para um passado desastroso como o seu. O que estás vivendo e inteira e completamente novo, mesmo que repetido."
O jovem demorou o seu olhar no velho, mudou de tom:
"E se eu disser que nem ao menos o tempo importa mais pra mim? E se eu disser que, para mim, o tempo está eternamente parado desde aquele dia? O que isso significaria? Hein?!"
"Significaria simplesmente que precisas de um relógio. Como da última vez, lembra-se?"
"Impossível! Você bem sabe, velho, que meu relógio há muito quebrou, e com ele todas as horas que ainda restavam passar! Não diga asneiras, velho, não combina com você." disse o jovem, deixando seus gritos morrerem pela velha sala comprida.
Calaram-se os dois. O jovem permaneceu encarando-o friamente, esperando pela resposta. O ancião inquietou-se em sua velha poltrona vermelha, baixou os olhos e deixou seus pensamentos fluírem pelo fogo crepitante. Tantas histórias aquela lareira poderia contar! Tantas cartas ele mesmo já queimara ali! Tantas poesias, músicas, desenhos... Mas eram tão poucos, se comparados aos jovem que se dispunha à sua frente. Tão poucos se comparados a como aquelas cartas, aquelas poesias, aquelas músicas e aqueles desenhos queimaram, cantando suas próprias partituras naquela velha lareira cega, morrendo jovens, justamente por serem jovens. Tão jovem...
O ancião focou seus olhos mais uma vez no garoto. Fitou-o com seriedade. Nunca o havia olhado daquela forma antes. Sempre falara com calma, mantendo ao máximo a postura humilde (porém sábia) que adquerira ao longo dos anos. O jovem sustentou o seu olhar com a mesma seriedade. Passaram-se vários minutos, cada um mais dilatado e prolongado que o outro, até que o ancião, por fim, disse, calma e profundamente:
"Não adiantaria em nada dizer para você buscar um relógio novo, não é?"
"Não mesmo."
"Então nosso encontro termina aqui. Boa sorte para consertar o antigo."
Estava mais uma vez deitado no chão de sua própria sala, tão sem graça se comparada à outra. Suas lágrimas haviam secado, mas continuava olhando fixamente para o ponto fixo do assoalho no qual, há um instante atrás, havia demorado um pouco mais seu olhar.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

A rua.

Era uma rua longa, velha e empoeirada, que nem mais era estrada. Há tempos ninguém se dava ao trabalho de passar por ali, afinal, o retorno já estava a duas quadras de distância. Nem mesmo ele (ou ela, não sei bem dizer) estaria ali se fosse inteligente ou atrevido o suficiente para ir por qualquer outra rua. Mas bom, eis que ali estava ele, parado já há um bom tempo, sem nem mesmo pensar em continuar. Apenas sentado, olhando pro seu próprio mundo, ou talvez o mundo depois daquela estrada, quem sabe?
Mas eis que ele continuou ali, por um bom tempo, diga-se de passagem. Anos, talvez décadas, não se sabe, afinal, não havia relógio nenhum naquele lugar. A idade o atingira como atingiria também a qualquer outro, como em qualquer outro lugar. Havia agora, ao invés de uma face lisa e com as poucas espinhas, uma enrugada com barba já branca. Seus olhos estavam dilatados, suas roupas quase tão empoeiradas quanto aquele lugar. Mas ele levantou, como se não tivesse passado nem ao menos um segundo, levantou e andou. Andou pela rua, agora infestada de mato. Andou sem se preocupar com nada assustador que pudesse pular de qualquer lugar no escuro. Simplesmente andou. Talvez esperando encontrar, enfim, o mundo que tanto sonhara. Ou talvez simplesmente querendo ir finalmente para algum lugar. Quem sabe? Afinal, ali também não havia mapa nenhum. Mas enquanto andava, lhe veio frustração. Frustração por perceber o quanto o ar se parecia como o de antes, o quanto o solo se parecia como o de antes e, principalmente, o quanto tudo era simplesmente como antes. E então ele deitou, ali mesmo, naquela rua velha e empoeirada, e chorou.
(...)

sexta-feira, 11 de junho de 2010

domingo, 6 de junho de 2010

Marrom.

Acontece que esses tempos todos eu tenho dito que é o azul, mas foi só hoje eu percebi que é o marrom, sabe?
Mas é que o marrom é simplesmente tão perfeito... Quer dizer, não qualquer marrom fajuto por aí, não esse dessas palavras, nem o da imagem no final da página. O seu marrom, sabe?
Aquele mesmo marrom do casaco que você estava usando no dia vinte e um. O mesmo marrom da madeira da sua casa que eu me divertia por imaginar. O mesmo marrom do assoalho que tantas vezes imaginei nós dois rolando e ouvindo aquela música dos Smiths, que acho que você nem nunca ouviu, que nem na história que nós dois gostávamos tanto.
E o azul? O que é que o azul fez pra mim, afinal? O azul do mar? O azul das suas lágrimas do dia vinte e um, ou até mesmo as desses últimos dias? O azul da nostálgia? Ou será que é só o azul da parede do meu quarto? O azul daquelas cores, daquelas dores, o azul do passado ou até mesmo o azul do meu fardo.
Eu queria mesmo era viver no marrom. Viver no marrom e deixar o azul pra lá. Queria viver no teu casaco do dia vinte e um. Queria viver na madeira daquela casa que imaginei pra você. Queria viver no assoalho da história que a gente tanto gostava. Eu queria era viver na minha cor favorita, eu queria viver no marrom.



Historinha atrasada.


Era uma vez uma menina chamada Samantha. Todo mundo na escola zoava com ela porque diziam que ela era feia. Ela, pelo contrário, se achava muito bonita, exceto pelos olhos. Nunca gostara daquele tom de mel-escuro.

sábado, 5 de junho de 2010

E Termina.

E começa. Começa que é meu e só meu. Começa que eu pertenço a mim mesmo e a mais ninguém. Começa que eu me jogo do irreal para o real, das asas nos pés para os pés no chão, da filosofia para a física. Começa que eu, enquanto mente, música e poesia que sou, me jogo do alto de mim mesmo para um caderno recém-fabricado, colorido com preto e branco e com páginas de papel, e pra que? Pra que? - Eu me pergunto.
Pra te ver - eis a resposta - Te ver fora dos meus sonhos. Te ver fora da menina de cabelos negros compridos que gostava da mesma banda que eu. Te ver por si mesma, ver mais do que aquele sentimento louco que me deixava louco, e que me fazia cantar e dançar bem, mesmo que só uma música.
E não é que deu certo? Não é que te achei? Não é que te amei, te cantei e te deitei sobre meus olhos? Não é que foi contigo que criei todos os paraísos nos quais dançamos? Todas as ilhas desertas que nos beijamos? E mais, não foi contigo que - me orgulho em dizer - vivi o romance mais belo e furado de todos os tempos?
E não é que foi no nosso naufrágio que eu morri? Não é que meu caderno se perdeu no meio do oceano e que, ironicamente, desde que morri não consegui mais te dizer onde está? Porque no final das contas morto não fala, só assiste a sua própria história terminar por si só.
E termina. Termina que é seu e só seu. Termina que eu pertenço a você e a mais ninguém. Termina que me jogo do irreal para a fantasia, das asas nos pés para as asas nas costas, da filosofia para a minha (ou sua, chame como quiser) filosofia. Termina que a mente, a musica e a poesia se jogam do alto da pedra mais alta pro mar, pra você, pra a sereia bonita, com olhos feito pérola e cabelos feito anjo. E termina.

O pomposo recomeço do Caderno da B&W

Uma gaveta ainda em algum outro lugar, Passado de Presente de Futuro.

Queridos, escrevo a você esta carta, fazendo votos que estejam bem, apenas para justificar e alertar o que virá a se decorrer nos próximos tempos que, na verdade, já deveria ter se decorrido há muito tempo, numa gaveta do meu quarto.
Eu nunca fui bom pra falar esse tipo de coisa importante assim, pessoalmente. Então me decidi por explicar-lhe pondo em anexo mais uma das cartas que preparei para ti. Que preparei e não mandei, como de costume. Que preparei enquanto eu, enquanto você, enquanto atentado, bêbado, cientista, agnóstico e, principalmente enquanto o narrador de nossa própria história que sou. Espero que goste.


Mas bom, eis que as próximas cartas serão páginas do meu velho caderno, que você já conhece de rosto e que é, no final das contas, só mais um dos elementos daquela fascinante gaveta como um todo. Porque na verdade, existem ainda muitos outros que são, lamentavelmente impossíveis de sair de lá, uma vez que se de lá saíssem, nem em todos os latifúndios do nosso pobre e suado mundo terrestre haveria espaço para tanto. Só as páginas em si já quase não cabem mais no meu quarto! Mas bem, agora devo, enquanto o narrador que agora sou, deixá-los aqui, a mercê do próprio personagem que também sou, espero que aprecie seus futuros textos, notas, ou qualquer bagulhada que ele os mandar.



Mandem beijos para a vovó e abraços para as crianças,
Decididamente,
Seu querido Narrador.


(é impressionante tudo que cabe numa simples gaveta, não?)





"Numa gaveta do meu quarto: Fim (ou recomeço)."



"Numa gaveta do meu quarto. É onde havia começado e acabado tudo. É onde nasci, onde morri e onde continuei morrendo. Talvez a minha morte fosse para ser o fim, mas eis que decidi comigo mesmo renegá-la, pelo menos até que eu ache apropriado dela vir.

E se não acaba, só o que resta a fazer é recomeçar. E eis recomeça, recomeça do mesmo lugar que começa, na mesma gaveta do meu quarto. Recomeça sendo posto de volta o que antes havia sido tirado. Sendo reposto, de pouco a posto, uma parte do inteiro que sinto, do inteiro que fomos, e do inteiro que tento, por mim mesmo, voltar a ser, enquanto o atentado que sou.

Tolice? Talvez. Talvez chame tolice renegar o fim, talvez seja tolice querer renascer, talvez seja tolice querer repor o que já há muito se foi. Talvez devesse continuar sem, continuar no quem, continuar no inteiro sem o meio, continuar na rua e deixar de viver na lua. Mas é só que estava tão frio lá... Tão frio quanto aí, aposto. E aposto de que mesmo a tolice, mesmo o frio, e até mesmo você, não escolheriam estar onde estão se pudessem ou soubessem como fazê-lo, nem deixar de repor o que, quando posto, tão bem fez a tanto.
E eu me pergunto se é de fato possível. Me pergunto se essas páginas não são só mais uma das centenas de frações de ilusões que criei pra mim, me pergunto se essas páginas nas quais escrevo realmente existem, realmente criem e realmente rimem. Mas no que mais seria possível crer, se nem as minhas próprias páginas eu puder ter? Se nem nas minhas próprias páginas eu puder ser, se nem nas minhas próprias páginas eu puder beber, mesmo que uma última vez, em paz, enquanto o bêbado que sou.

E é justamente por isso que eu me decidi por crer. Porque mesmo que seja tolice, não deixa de ser (como eu sempre disse e gostei de dizer) a tolice mais bela que todos tem medo de beber nesse mundo. Que afinal de contas, já está tão encharcado de tolices fajutas e nuas, que uma tolice tão bela no mínimo haveria de diluir um pouco os males de todas as outras.
E estou ciente, enquanto o cientista que sou. Estou ciente do que estou fazendo, estou ciente do que pode acontecer, e estou ciente de que essas podem ser as últimas páginas que (eu teria orgulho de dizer) foram mais um dos lindos frutos que minhas próprias ilusões me proporcionaram. Mas eis que se forem, de fato, eu estaria já incapacitado de contá-las pela própria fossa, que ainda teriam a injúria de chamar de boca. Por isso então rogo-lhe, enquanto o agnóstico que sou: Diz por mim. Quando perguntarem, conte de todos os frutos que me foram feitos pelas minhas próprias ilusões, conte as maravilhas que haviam no meu próprio país das maravilhas, conte dos paraísos, das ilhas desertas, do naufrágio, e termine com um simples 'ele morreu'.

E, além do mais, eu já estava morto antes mesmo. Que custaria acabar morrendo mais uma vez? Tolice mesmo seria ter medo de morrer. Porque se morrer, morreu, Fim. (ou recomeço)".